“Jezabel”, de Irène Némirovsky, é um romance psicológico intenso que mergulha nos abismos da vaidade, do ciúme e da obsessão pelo poder da juventude. Publicado originalmente em 1936, o livro narra a história de Gladys Eysenach, uma mulher da alta sociedade parisiense que, aos cinquenta anos, comete um crime e precisa encarar não só o julgamento da Justiça, mas principalmente o julgamento moral da própria vida. O enredo é construído com uma atmosfera elegante e sombria, típica da prosa de Némirovsky, marcada por introspecção e crítica social refinada.
A narrativa se inicia de forma impactante, com Gladys sentada no banco dos réus, acusada de assassinar um jovem. A cena é envolta em mistério, e o leitor é imediatamente tomado pela curiosidade sobre as razões que levaram essa mulher sofisticada a cometer tal ato. Aos poucos, a autora desmonta a fachada de glamour e respeitabilidade de Gladys, revelando as motivações profundas que guiam suas atitudes. A vaidade extrema e o medo do envelhecimento se mostram motores de uma trajetória marcada por ilusões.
Com o desenrolar da trama, o passado de Gladys vai sendo revelado em flashbacks. Descobrimos sua juventude radiante, o culto à beleza que sempre exerceu e sua fixação por ser eternamente desejada. Para Gladys, a admiração dos homens era mais importante que o amor verdadeiro ou o cuidado com a própria filha, o que resulta em relações frágeis e destrutivas. Ela se recusa a envelhecer, tentando em vão manter-se jovem por meio da sedução e da negação da passagem do tempo.
Irène Némirovsky constrói Gladys como uma figura trágica, mas jamais caricatural. Sua angústia diante do espelho e o horror da decadência física são tratados com crueldade e compaixão ao mesmo tempo. O retrato psicológico da protagonista é um dos pontos mais fortes da obra, revelando os danos de uma existência centrada na aparência e na manipulação. A autora expõe como a sociedade da época, especialmente entre a elite parisiense, impunha às mulheres padrões cruéis de juventude e beleza, que muitas internalizavam até a autodestruição.
O título do romance, “Jezabel”, alude à personagem bíblica conhecida por sua perversidade e vaidade, criando uma associação simbólica com Gladys. Assim como a rainha de Israel, a protagonista de Némirovsky é julgada por sua sensualidade e ambição, o que intensifica o peso moral da narrativa. A crítica social é contundente, mas nunca panfletária. A autora usa a história individual para refletir sobre um mal coletivo: a superficialidade como valor dominante.
O romance também é marcado pela elegância estilística, característica de Némirovsky. Sua prosa é fluida, precisa e ao mesmo tempo cheia de nuance, capaz de explorar as contradições humanas com fineza. As descrições dos ambientes e dos estados emocionais são densas, tornando o universo interno de Gladys tão palpável quanto o tribunal onde ela é julgada. A escrita envolve o leitor e o conduz por um percurso de fascínio e repulsa.
Mesmo tratando de temas tão sombrios, o livro não se resume a uma condenação da vaidade. Há uma profunda reflexão sobre o medo da morte, da solidão e do esquecimento, sentimentos universais que atravessam todas as épocas. Gladys representa uma mulher que se perdeu em meio a esses medos, mas cuja dor é reconhecível e até comovente. A empatia e o julgamento se misturam no leitor, criando um efeito ambíguo e potente.
“Jezabel” é, portanto, um romance sobre o fracasso de uma vida dedicada à aparência, sobre as tragédias silenciosas que a busca pela juventude eterna pode provocar. Irène Némirovsky, com seu talento extraordinário para capturar o drama humano, entrega uma obra tão inquietante quanto sofisticada. Ao final, o leitor não apenas compreende Gladys — ele se vê obrigado a encarar as armadilhas de uma sociedade que ainda hoje valoriza mais a aparência do que a profundidade do ser.
Essa narrativa, embora ambientada no passado, continua atual, provocando reflexões sobre identidade, culpa e o preço da negação da passagem do tempo. Irène Némirovsky, com sua visão crítica e sensibilidade psicológica, transforma “Jezabel” em um retrato implacável da fragilidade humana diante da vaidade e da ilusão.