Em Perto do Coração Selvagem, Clarice Lispector mergulha profundamente na psique humana, explorando a essência de uma mulher que vive em constante confronto com sua própria existência. O romance narra a história de Joana, uma personagem complexa e introspectiva, cuja vida é contada de forma não linear, em uma estrutura fragmentada que reflete seus pensamentos e emoções.
Desde a infância, Joana se mostra uma figura única, dotada de uma sensibilidade aguda e uma curiosidade inata sobre o mundo ao seu redor. Suas reflexões já na juventude revelam sua busca incessante por significado, uma tentativa de compreender não apenas a realidade externa, mas também os mistérios de sua alma. A morte precoce de seus pais e sua criação por uma tia distante moldam sua percepção de afeto e pertencimento, deixando marcas que ecoam em sua vida adulta.
Ao casar-se com Otávio, Joana experimenta uma relação marcada por tensões e incompreensões. Enquanto ele representa a estabilidade e os valores tradicionais, ela busca liberdade e autenticidade. O casamento torna-se um palco para conflitos internos, em que o desejo de se conectar com o outro é confrontado com sua necessidade de individualidade. Quando Otávio se envolve com outra mulher, Joana não reage com ressentimento típico, mas com uma aceitação quase filosófica, demonstrando sua complexidade emocional e sua visão de mundo profundamente introspectiva.
Clarice Lispector constrói Joana como uma personagem que vive na fronteira entre o racional e o instintivo. Ela é atraída pela ideia de um coração selvagem, um estado de pureza e força primordial que contrasta com as limitações impostas pela civilização e pelas convenções sociais. Essa tensão é o fio condutor da narrativa, manifestando-se em monólogos internos e descrições poéticas que capturam as nuances do fluxo de consciência de Joana.
O título do romance, inspirado em uma passagem de Retrato do Artista Quando Jovem de James Joyce, simboliza essa busca por uma essência indomável, um retorno ao selvagem como forma de libertação. Assim, Joana não é apenas uma mulher em conflito; ela é uma metáfora da condição humana, representando a luta entre a conformidade e o desejo de transcendência.
Perto do Coração Selvagem foi revolucionário para a literatura brasileira ao trazer uma voz feminina singular, com uma prosa introspectiva e lírica que desafiou as convenções narrativas da época. Publicado em 1943, quando Clarice Lispector tinha apenas 23 anos, o livro foi saudado como uma obra-prima, marcando o início de uma carreira literária que redefiniria os limites da literatura.
Ao final, o romance não oferece respostas definitivas, mas convida o leitor a acompanhar Joana em sua jornada existencial, uma viagem ao desconhecido que ecoa em cada um de nós. O “coração selvagem” permanece como um símbolo de liberdade, autenticidade e da conexão profunda com o mistério da vida.