“Quando os Relógios Comem Poeira”, de Júlio Andrade Leme, é uma obra poética e melancólica que mergulha nas ruínas do tempo, na memória e na identidade. O autor constrói um enredo fragmentado, mas profundamente simbólico, no qual o tempo é tanto personagem quanto cenário, corroendo certezas e revelando o que há de mais íntimo na condição humana. A poeira dos relógios se torna metáfora da passagem dos dias, do esquecimento e da fragilidade das construções emocionais e sociais.
A narrativa é marcada por uma escrita sensível e introspectiva, que acompanha personagens lidando com o desgaste do cotidiano e com a memória de tempos que já não voltam. As relações humanas são esboçadas com delicadeza e dor, como se cada gesto fosse um eco de algo que o tempo insiste em apagar. Leme se vale da imagem do relógio como símbolo da tentativa humana de medir e dominar o tempo, mas mostra, de maneira sutil, como essa tentativa é vã diante da inevitável corrosão das horas.
A ambientação é vaga e atemporal, com cenários que parecem estar suspensos entre o passado e o presente, como se o mundo estivesse em constante estado de ruína. As descrições carregam um lirismo sombrio, e os objetos — especialmente os relógios — ganham vida e função narrativa, acumulando poeira como prova do abandono e da desilusão. É nesse espaço estagnado que os personagens caminham, tentam se lembrar, esquecem, sonham e, por vezes, desistem.
O tempo é tratado como um inimigo silencioso, mas também como uma força que, apesar de tudo, oferece sentido. Leme constrói sua trama com uma estrutura não linear, em que os capítulos não obedecem a uma cronologia rígida. Essa escolha estilística reforça a ideia de que o tempo, no universo do livro, perdeu sua lógica tradicional — os relógios, comendo poeira, já não ditam a ordem das coisas.
As temáticas abordadas por Júlio Andrade Leme são universais, mas ganham um tom original ao serem filtradas por uma linguagem poética e imagética. A solidão, o envelhecimento, a memória e o esquecimento se entrelaçam em cenas delicadas, nas quais pequenos acontecimentos — um olhar, uma carta esquecida, um relógio parado — ganham densidade simbólica. O autor convida o leitor a observar o tempo não como linha reta, mas como poeira em suspensão.
Ao longo da narrativa, os personagens não têm nomes marcantes, o que acentua o caráter existencial da obra. Eles funcionam mais como vozes ou presenças que habitam um espaço de transição, entre o que foi e o que nunca chegou a ser. São figuras silenciosas, reflexivas, que convivem com a ruína sem enfrentá-la de forma explícita. Há uma aceitação resignada, mas também uma tentativa tênue de reencontrar sentido no meio do esquecimento.
A prosa de Leme é marcada pela musicalidade, com frases que muitas vezes lembram versos. Essa escolha estilística dá ao livro um ritmo quase hipnótico, arrastando o leitor para o mesmo estado contemplativo dos personagens. A leitura exige atenção e entrega, pois não há ação evidente — há, sim, um mergulho na experiência do tempo como afeto, perda e lembrança.
No desfecho, “Quando os Relógios Comem Poeira” não oferece conclusões definitivas. O autor opta por uma finalização aberta, coerente com o espírito da obra. A poeira continua a se acumular, o tempo continua a passar — ou a parar —, e o leitor é deixado com a sensação de que algo precioso foi perdido, mas também com a consciência de que é nesse perder que reside a beleza da existência.
Em suma, Júlio Andrade Leme entrega uma obra sensível, densa e filosófica. “Quando os Relógios Comem Poeira” é uma meditação sobre o tempo, a memória e o silêncio. Um livro para ser lido devagar, como quem observa os grãos de poeira dançando no ar — ou os ponteiros de um relógio que, aos poucos, deixam de se mover.