“A Guerra do Bom Fim”, de Moacyr Scliar, é uma obra que mistura realidade e fantasia, memória e imaginação, para retratar a infância e juventude de um menino judeu no bairro Bom Fim, em Porto Alegre. A narrativa é conduzida com o tom nostálgico e lírico de quem olha para o passado com afeto, mas também com senso crítico e ironia.
O protagonista, um garoto de nome não revelado, vive cercado por personagens pitorescos da comunidade judaica da capital gaúcha. O bairro do Bom Fim, com sua efervescência cultural, religiosidade e cotidianos peculiares, se transforma quase num personagem da história. É nesse cenário que o garoto e seus amigos decidem criar um “exército” para enfrentar injustiças — e, de forma simbólica, declarar guerra à opressão.
A “guerra” em questão é mais imaginária do que real, mas serve de pano de fundo para abordar temas profundos como exclusão, identidade, antissemitismo, amizade e amadurecimento. As batalhas são encenadas nas ruas do bairro com espadas de madeira, alianças improvisadas e estratégias inspiradas em filmes de guerra — tudo com o olhar de crianças que ainda não compreendem completamente o mundo ao seu redor.
Scliar mescla os episódios fictícios com elementos históricos reais, como o eco da Segunda Guerra Mundial, o nazismo e os conflitos vividos pelos judeus na diáspora. O autor equilibra com maestria o tom leve das brincadeiras infantis com a gravidade dos temas que as inspiram. O resultado é uma obra ao mesmo tempo divertida e tocante, que provoca risos e reflexão.
O romance é também uma homenagem à cultura judaica e às famílias imigrantes, que lutaram para manter suas tradições em um novo país. A maneira como as crianças veem o mundo dos adultos — cheio de regras incompreensíveis, expectativas e contradições — é uma crítica sutil e afiada aos absurdos do mundo “real”.
Ao longo do livro, o protagonista começa a perceber as nuances do que significa crescer em meio a tantas contradições. A ingenuidade da infância vai se perdendo aos poucos, conforme ele se depara com o preconceito, a perda e a complexidade das relações humanas. A “guerra” torna-se então um símbolo do processo de crescimento e da perda da inocência.
A narrativa de Scliar é marcada pelo uso de humor, fantasia e ternura. Sua escrita é acessível, poética e profundamente brasileira, mesmo quando se refere à tradição judaica ou à herança europeia dos personagens. O autor, ele mesmo judeu do Bom Fim, traz uma autenticidade que só quem viveu aquele universo poderia oferecer.
Com grande sensibilidade, “A Guerra do Bom Fim” trata da importância da imaginação como forma de resistência — tanto à dor como à mesmice. A infância, nesse sentido, é não só um tempo de descobertas, mas também de invenções que ajudam a suportar e interpretar a realidade.
Ao final, resta ao leitor a sensação de ter visitado um mundo único, visto com os olhos de um menino que aprendeu, entre batalhas fictícias e dilemas reais, que crescer é entender a complexidade do mundo sem perder o encantamento por ele. Uma obra breve, profunda e inesquecível de Moacyr Scliar.