Escrito por Permínio Asfora, o romance “Sapé” situa-se na pequena cidade paraibana de Sapé, nos anos 1930, e aborda a vida dos trabalhadores rurais nos algodoais — a paisagem da caatinga, a ferrovia cortando o sertão, as condições às margens da plantação de algodão. A narrativa mostra como a posse da terra, o trabalho braçal e a estrutura oligárquica se entrelaçam num contexto de desigualdade e dependência. O autor constrói retratos de personagens simples, muitas vezes quase sem voz, cujas existências são moldadas pela dureza do solo, pelo atraso social e pela rigidez de poder. A ambientação denuncia, em tom crítico, o latifúndio, o domínio social dos coronéis e a exploração dos trabalhadores agrícolas, colocando-se com vigor contra o quadro de opressão naquele Nordeste. Ao mesmo tempo, o livro vale-se de uma escrita regionalista autêntica, mostrando a fala, a cultura, o ritmo do Nordeste profundo como parte integrante da trama.
A obra desdobra-se em camadas sociais diferentes: por um lado os grandes proprietários, onipotentes nas relações econômicas locais; por outro, os plantadores menores, os arrendatários e os trabalhadores agrícolas que sofrem com secas, condições precárias e relações quase servis de trabalho. “Sapé” apresenta essa micro-sociedade sertaneja como representação de uma realidade nacional: o Brasil das periferias, da terra mal distribuída, do progresso que não alcança quem está no chão. A tensão entre movimento e imobilismo permeia a narrativa: enquanto alguns sonham com mudança, muitos permanecem presos ao ciclo da pobreza e do domínio latifundiário. Ainda, o autor insere nessa ambientação o impacto da ferrovia — símbolo de modernização, mas também de confluência de interesses externos e de desigualdade emergente. A linha férrea que corta o sertão torna-se metáfora de passagem, de deslocamento, de promessa não cumprida.
Apesar do contexto local, “Sapé” adquire caráter universal: o conflito entre trabalho e propriedade, entre liberdade e dominação, entre o desejo de contar com uma voz e o silenciamento imposto pelas estruturas. O romance denuncia também o acesso precário à justiça, as relações informais de poder, as alianças entre latifundiários e o aparato estatal que favorece a manutenção do status quo. A opção do autor por mostrar pequenas figuras do sertão — homens que labutam, mulheres que esperam, jovens que veem poucas saídas — cria empatia e revela a força da narrativa regional para questionar espaços mais amplos. Em “Sapé”, o Nordeste não é apenas cenário, mas protagonista: a caatinga, a ferrovia, o algodão, o latifúndio constituem um mundo que se move entre o silêncio e o grito contido.
A história também traz a dimensão política — ainda que velada — de um sertão prestes a convulsões, com marcas de sindicalismo, de ligas camponesas, de mobilização popular que mais tarde iriam se afirmar. O livro foi, de fato, interditado durante o regime autoritário de Getúlio Vargas, sob acusação de subversão e imoralidade. Essa censura reforça que “Sapé” não era apenas um retrato lírico do sertão, mas um livro de denúncia, de voz aos que eram silenciados, de resistência literária. A interdição, por sua vez, tornou-o símbolo de uma literatura que incomoda, que questiona, que interfere. A reedição em 2015 da obra pela Editora UFPB foi vista como correção de um “ato de despotismo histórico-literário”.
No plano estético, Permínio Asfora opta por uma linguagem direta, por cenas cotidianas, diálogos marcados pelo regionalismo e pelo sotaque do sertão; descrições breves porém densas da natureza árida, do calor, da poeira, do suor dos trabalhadores. A voz narrativa alterna a observação externa do ambiente e o mergulho nos afetos dos personagens, nas suas frustrações, sonhos e resignações. Esse clímax de micro-realidades permite ao autor tornar-visível o que geralmente é invisível: o trabalhador rural, o ambiente sertanejo, os desequilíbrios sociais. “Sapé” consegue tornar-se tanto documento social quanto literatura de qualidade — vale como romance de ambiente, de caráter regional, mas também como texto de implicações políticas.
Um dos elementos centrais é o tema da terra: quem a possui, quem a cultiva, quem dela depende, quem é excluído dela. No romance, a terra não é neutra: está impregnada de história, de sangue, de lutas, de ritos. O espaço físico do sertão funciona como memória e palco: a caatinga, a linha de trem, o engenho de algodão, os casebres, os ranchos. A terra registra e dá forma aos dramas humanos, às esperanças e à desesperança. E o autor mostra como, quando a posse da terra é desigual, o desenvolvimento torna-se promessa vazia, a labuta diária converte-se em repetição, a mobilidade social em miragem. “Sapé” revela que o sertão é chão e campo de batalha.
Ao longo da obra, Permínio Asfora constrói personagens que representam diferentes formas de resistência: há os que aceitam o destino imposto, os que resistem silenciosamente, os que ousam contestar — ainda que de modo tímido. Essa diversidade de atitudes permite ao leitor perceber que não existe apenas o oprimido resignado ou o radicalizado: há gama de ambivalências, de possibilidades, de humanidade. A obra, então, provoca reflexão sobre o que seria justiça social, o que seria liberdade verdadeira, o que significa pertencer ou não à terra. Em “Sapé”, os personagens não esperam que tudo mude de imediato, mas experimentam o esmagamento das suas possibilidades sob um regime de exploração.
Finalmente, “Sapé” permanece atual: embora publicado em 1940, seus temas — trabalho rural, desigualdade, opressão latifundiária, centralização do poder, silêncio das periferias — ressoam no Brasil contemporâneo, especialmente no contexto da reforma agrária, da mobilização de trabalhadores, das lutas por terra e da crítica social. A obra de Asfora convida à leitura não apenas como registro de época, mas como interlocução com os dilemas da modernidade e da justiça no país. Ao revisitar “Sapé”, somos instigados a olhar para além da paisagem, para além da narrativa, para o que permanece invisível: os que vivem à margem e os sistemas que os mantêm à margem.

