“A Mulher de Lot”, de Marek Halter, é uma releitura poderosa e poética de uma das personagens mais enigmáticas da Bíblia. Nesta obra, Halter dá voz à mulher sem nome que olhou para trás e virou estátua de sal ao fugir de Sodoma — e, ao fazer isso, reconstrói sua trajetória, seus sentimentos e seu papel como símbolo de resistência e humanidade.
A narrativa é conduzida em primeira pessoa por Adama, nome dado por Halter à esposa de Lot. Através de sua voz, conhecemos uma mulher complexa, que vive em uma cidade marcada pelo prazer, pela desigualdade e pela degradação moral. Porém, diferente da imagem tradicional de mera transgressora, Adama emerge como uma figura questionadora e profundamente humana.
Ao retratar Sodoma, Marek Halter a transforma num microcosmo das sociedades modernas: opulenta, injusta e corrompida. Adama observa as contradições à sua volta — o luxo de poucos, o sofrimento dos fracos, o uso do poder como opressão — e começa a nutrir dúvidas sobre a justiça divina e o papel da mulher nesse mundo patriarcal.
A relação de Adama com Lot também é central na narrativa. Embora ele seja um homem justo aos olhos de Deus, sua rigidez moral e submissão cega aos mandamentos contrastam com a sensibilidade e inquietação de sua esposa. Adama busca sentido, liberdade e afeto, enquanto Lot representa a obediência e o conformismo.
Ao fugir de Sodoma com sua família, Adama é tomada por sentimentos ambíguos. Deixa para trás uma cidade em ruínas, mas também memórias, afetos e parte de si mesma. Quando olha para trás, não é por desobediência gratuita, mas por amor, saudade, dúvida — por ser, essencialmente, humana.
A famosa virada de Adama em uma estátua de sal é interpretada por Halter não como punição, mas como símbolo. Ela é a memória daquilo que foi perdido, o testemunho silencioso de um mundo destruído, e um grito contra a indiferença. Ao dar-lhe voz, Halter resgata uma mulher esquecida e a transforma em figura central.
O autor tece a história com lirismo e profundidade psicológica, explorando temas como fé, culpa, liberdade, desejo e memória. A figura de Adama se torna universal — a mulher que busca sentido em um mundo que exige submissão, que carrega a dor do passado e questiona o silêncio dos céus.
Ao final, “A Mulher de Lot” não é apenas uma reinterpretação bíblica, mas uma denúncia poética contra a opressão, o apagamento da voz feminina e a destruição provocada pelo fanatismo. A estátua de sal passa a representar todas as mulheres que ousaram olhar, sentir e lembrar.
Marek Halter, com sua sensibilidade literária e conhecimento histórico, oferece em “A Mulher de Lot” uma narrativa emocionante e atual. É uma história sobre o poder da memória, o peso das escolhas e a beleza da desobediência que nasce do amor.