“O Evangelho Segundo a Serpente”, de Roberto Piva, é uma obra que mergulha nas profundezas da subjetividade humana, utilizando uma linguagem poética para explorar temas como espiritualidade, rebeldia e o inconsciente. Publicado em 1999, o livro mistura poesia e prosa, refletindo o estilo característico do autor, que sempre desafiou as convenções literárias e sociais. Roberto Piva, um dos poetas mais notáveis da geração marginal, cria uma narrativa que propõe uma releitura crítica e provocadora de conceitos tradicionais, sobretudo religiosos.
Ao longo de “O Evangelho Segundo a Serpente”, a serpente bíblica emerge como um símbolo ambíguo, representando ao mesmo tempo a tentação, a sabedoria e a transgressão. Piva faz uso dessa imagem para questionar as normas estabelecidas e instigar reflexões sobre a liberdade e a autodescoberta. A serpente, que na Bíblia está associada ao pecado original, aqui ganha uma nova interpretação, como uma figura que desafia o conformismo e o controle social. Nesse sentido, o livro propõe um evangelho alternativo, onde a serpente simboliza o despertar para uma consciência mais ampla e livre.
O texto de Piva é fortemente influenciado por correntes de pensamento como o surrealismo e o misticismo, que se misturam a referências à cultura popular, à psicodelia e à contracultura dos anos 60 e 70. A obra se caracteriza pela colagem de imagens intensas, alucinatórias e oníricas, que transportam o leitor para uma experiência quase transcendental. A linguagem é muitas vezes fragmentada, carregada de metáforas e simbolismos, o que contribui para a atmosfera de delírio poético que permeia toda a obra.
Um dos aspectos mais marcantes de “O Evangelho Segundo a Serpente” é a crítica à moralidade cristã e à repressão sexual. Piva, que sempre foi um defensor da liberdade em todas as suas formas, utiliza sua poesia para expor a hipocrisia das instituições religiosas e a forma como elas controlam os desejos humanos. A serpente, aqui, assume o papel de libertadora, de guia para uma nova forma de viver, onde os instintos e os desejos não são reprimidos, mas celebrados como parte essencial da experiência humana.
Além da crítica à religião, Piva também aborda temas como o poder, a morte e a loucura. As fronteiras entre o sagrado e o profano, o real e o imaginário, são constantemente borradas, criando uma sensação de caos controlado, típico da poesia pivaiana. As paisagens urbanas de São Paulo, que sempre foram uma inspiração para o poeta, aparecem como um cenário de desolação e ao mesmo tempo de possibilidades infinitas, onde o indivíduo pode se perder e se reencontrar em meio ao fluxo incessante da vida moderna.
Outro tema central da obra é a busca por uma identidade própria, em um mundo que constantemente tenta moldar e limitar o indivíduo. A figura da serpente, com sua capacidade de trocar de pele, pode ser vista como uma metáfora para a transformação contínua do ser, uma recusa em ser fixado ou categorizado. Piva celebra a multiplicidade de facetas do eu, rejeitando qualquer tentativa de enquadramento ou simplificação.
Em sua essência, “O Evangelho Segundo a Serpente” é uma obra de ruptura e provocação, que desafia o leitor a questionar suas próprias crenças e percepções sobre o mundo. Através de sua poesia caótica, Roberto Piva nos convida a abraçar o mistério, a incerteza e a transgressão como caminhos para uma forma mais autêntica e livre de existência.