“O Espelho”, conto integrante da coletânea Várias Histórias de Machado de Assis, é uma narrativa que explora a dualidade da identidade humana. O autor parte de uma situação aparentemente simples, quando um grupo de pessoas conversa sobre a natureza da alma, e um dos personagens, Jacobina, decide expor sua visão por meio de um relato pessoal. A partir daí, o conto se torna uma reflexão filosófica sobre a multiplicidade do “eu”.
Jacobina apresenta a ideia de que cada pessoa possui duas almas: uma interna e outra externa. A primeira estaria ligada à essência, aquilo que constitui a individualidade verdadeira; já a segunda estaria relacionada ao olhar dos outros, às convenções sociais e ao papel que desempenhamos diante do mundo. Essa dualidade é o ponto central do conto.
No relato, Jacobina narra uma experiência vivida ao se tornar alferes da Guarda Nacional, posição que lhe conferia status e prestígio. Ao visitar a fazenda da tia, ele percebe que sua identidade social passa a ser determinada pela farda que veste, ou seja, pelo reflexo que os outros têm dele. A “alma externa” ganha protagonismo, tornando-se mais importante do que a sua essência interior.
Quando se vê isolado, sem a presença de pessoas que reconheçam sua patente e sem vestir o uniforme, Jacobina entra em crise. Ele percebe que sem a validação externa sua identidade se desfaz, revelando uma sensação de vazio e desorientação. O espelho, nesse contexto, simboliza a imagem social que sustenta sua “segunda alma”.
O conto revela a crítica de Machado de Assis à sociedade do século XIX, marcada pela valorização excessiva das aparências, dos títulos e das convenções sociais. A reflexão proposta questiona até que ponto o indivíduo é verdadeiramente livre ou apenas uma construção moldada pelo olhar alheio.
A ironia e a sutileza de Machado aparecem ao longo da narrativa, especialmente na forma como o autor desconstrói a segurança de Jacobina. A ideia das duas almas, apesar de apresentada em tom filosófico, também carrega uma crítica ao ridículo de depender da validação social para existir plenamente.
O Espelho, portanto, transcende a simplicidade de uma história curta e se torna uma metáfora poderosa sobre identidade, aparência e essência. Ao problematizar a relação entre o “eu” íntimo e o “eu” social, o conto mantém sua atualidade e provoca reflexões que ultrapassam o contexto histórico em que foi escrito.
Em resumo, “O Espelho” é um exemplo da genialidade de Machado de Assis ao transformar uma anedota em uma análise profunda da condição humana. Através de humor, ironia e filosofia, o autor convida o leitor a refletir sobre quem realmente somos diante de nós mesmos e dos outros.