O livro Vista Chinesa, de Tatiana Salem Levy, é uma narrativa intensa e dolorosa que aborda o trauma, a violência sexual e o processo de reconstrução de uma mulher após um episódio devastador. A história parte de um acontecimento brutal: o estupro da protagonista no Parque Lage, no Rio de Janeiro, quando ela voltava de uma caminhada. A partir desse evento, a autora constrói uma reflexão profunda sobre o corpo, o medo e a tentativa de retomar o controle sobre a própria vida. A escrita é confessional, poética e corajosa, conduzindo o leitor por uma jornada de dor e resistência.
A narrativa se desenvolve em primeira pessoa, o que amplia a sensação de intimidade e vulnerabilidade. A protagonista revisita o trauma como quem tenta costurar uma ferida aberta, alternando entre lembranças, silêncios e fragmentos de memória. Tatiana Salem Levy não busca o sensacionalismo, mas sim a verdade emocional e psicológica do que é sobreviver à violência. O texto é entrecortado por reflexões sobre a culpa, a vergonha e a dificuldade de ser ouvida em uma sociedade que frequentemente duvida da palavra da mulher.
Mais do que uma história sobre um crime, Vista Chinesa é um retrato sobre o impacto da violência na identidade feminina. A autora expõe como o corpo violentado se torna um campo de batalha entre o desejo de viver e o impulso de se esconder. O trauma não é tratado como um evento isolado, mas como algo que se infiltra em todos os aspectos da vida — nas relações, na rotina, na maneira de olhar o mundo. A escrita transforma dor em linguagem, e linguagem em resistência.
Tatiana Salem Levy também explora a paisagem do Rio de Janeiro como um personagem simbólico. A cidade, com sua beleza e brutalidade, reflete o contraste entre o cenário paradisíaco e a violência cotidiana. O título, Vista Chinesa, remete ao mirante localizado no alto da Floresta da Tijuca — um local de contemplação e, paradoxalmente, de horror. Essa contradição espacial reforça o tema central do livro: a coexistência entre o sublime e o terrível, entre o que é visto e o que se esconde.
A linguagem de Levy é densa e lírica, marcada por repetições e silêncios que traduzem o esforço da protagonista em dar forma ao indizível. A autora emprega uma estrutura fragmentada, espelhando o próprio processo de reconstrução emocional. Essa forma narrativa, ao mesmo tempo poética e direta, permite ao leitor sentir o peso da experiência sem distanciamento. A literatura, aqui, atua como um espaço de cura e denúncia, transformando o testemunho pessoal em gesto político.
Outro aspecto relevante da obra é a crítica à impunidade e à indiferença social diante da violência contra a mulher. Levy mostra como o trauma não termina no ato em si, mas se prolonga na negligência das instituições, na falta de empatia e no julgamento público. O silêncio imposto às vítimas é questionado com força e sensibilidade. A autora escreve com a coragem de quem reivindica o direito à fala e à escuta, fazendo da literatura uma forma de enfrentamento.
O romance também discute a maternidade, o amor e a fragilidade dos laços humanos sob a sombra da dor. A protagonista reflete sobre sua infância, sua relação com os pais e a herança emocional das mulheres que a antecederam. Esses temas ampliam o alcance do livro, mostrando que o trauma individual está inserido em uma rede de memórias e violências coletivas. Vista Chinesa é, assim, tanto uma narrativa pessoal quanto um espelho de uma experiência social mais ampla.
Ao final, Vista Chinesa se revela uma obra sobre sobrevivência, escrita com uma beleza que não suaviza a dor, mas a transforma em força. Tatiana Salem Levy nos convida a encarar o que é difícil de olhar — o medo, a culpa, a vulnerabilidade — e mostra que narrar é uma forma de continuar existindo. O livro é um testemunho de coragem e uma contribuição essencial para o debate sobre gênero, memória e justiça no Brasil contemporâneo.

