Entre as Mãos, de Juliana Leite, é um romance que começa com um acidente traumático sofrido por Magdalena, uma tecelã, que a deixa em coma. A história se desenrola a partir dessa interrupção abrupta da vida cotidiana, transformando o corpo em palco da dor e da resistência. As mãos de Magdalena, queimadas no acidente, tornam-se símbolo da perda e da possibilidade de reconstrução. O livro mergulha profundamente na relação entre corpo, trabalho manual e identidade feminina. A narrativa reflete sobre o gesto de tecer como metáfora da escrita e da sobrevivência.
A estrutura do romance é fragmentada, com múltiplas vozes narrativas e saltos no tempo, criando uma teia de experiências passadas e presentes. Na primeira parte, o companheiro de Magdalena ocupa o foco, lidando com a espera e a impotência diante da dor alheia. Em seguida, é a própria Magdalena quem narra, revisitando sua história, suas origens e o processo de reabilitação. A linguagem poética e precisa dá voz ao silêncio de um corpo que reaprende a existir. Cada fragmento do livro costura memórias, perdas e tentativas de continuidade.
As mãos, instrumento de trabalho e expressão, tornam-se o centro simbólico da narrativa. Através delas, Magdalena construiu sua vida, e é por elas que ela a vê desmoronar e, depois, recomeçar. O trabalho manual é também uma herança, um elo com a ancestralidade feminina. O gesto de tecer — literal e metafórico — está presente em cada capítulo como expressão de resistência. A autora usa essa imagem para falar de reconstrução emocional, física e simbólica. A costura do tecido vira costura da existência.
O romance não idealiza a superação, mas foca nos gestos mínimos do cotidiano que fazem a vida seguir. A recuperação de Magdalena não é heroica no sentido clássico, mas persistente, cheia de incertezas e falhas. O corpo ferido é apresentado como algo que ainda tem potência, mesmo marcado pela dor. O livro mostra como a recuperação envolve reaprender a viver com limites e com novas formas de existir. A esperança está nos detalhes, no que ainda se pode fazer com o que restou.
A escrita de Juliana Leite é sensível e ao mesmo tempo firme, e constrói um retrato honesto da mulher trabalhadora. Magdalena representa muitas mulheres que vivem da força das mãos e enfrentam o abandono, o silêncio e a precariedade. O romance também aborda as dificuldades enfrentadas no sistema de saúde, o descaso com o corpo feminino e o peso social das expectativas impostas às mulheres. A protagonista é uma figura de resistência silenciosa, sustentada por sua própria história e dignidade.
O tempo do livro é um tempo de suspensão, onde o passado invade o presente e o futuro é incerto. A memória é acionada como uma forma de continuar viva, mesmo quando o corpo falha. A reconstrução não é só física, mas subjetiva: uma nova identidade é costurada com fios de dor e lembrança. O processo de cura envolve também o enfrentamento de perdas invisíveis. O romance nos leva a pensar sobre o valor dos gestos que sustentam a vida comum.
A crítica social é sutil, mas presente. A autora denuncia, por meio da história de Magdalena, o abandono de corpos considerados improdutivos, a invisibilidade do trabalho feminino e os traumas deixados por uma sociedade que valoriza a eficiência acima da humanidade. A narrativa, ao centrar-se no cotidiano de uma mulher comum, dá voz a quem costuma ser silenciado. Magdalena sobrevive ao acidente, mas também sobrevive à exclusão social, ao apagamento simbólico e à solidão.
No fim, Entre as Mãos é um romance sobre sobrevivência, sobre o que nos sustenta quando tudo parece ruir. A escrita de Juliana Leite propõe que resistir pode ser tão simples e tão poderoso quanto continuar tecendo, mesmo com as mãos marcadas. A cura não está na volta ao que era, mas na criação de uma nova forma de existir. A vida se refaz no gesto cotidiano, na persistência silenciosa e na matéria do corpo, que, apesar das cicatrizes, ainda cria.