“A Gloriosa Família”, escrito por Pepetela em 1997, é um dos romances mais importantes da literatura angolana contemporânea. Ambientado no século XVII, em Luanda, durante o período colonial português, o livro apresenta uma narrativa poderosa sobre escravidão, mestiçagem, poder e hipocrisia social, conduzida por uma escrita envolvente e crítica. Ao mesclar ficção histórica com elementos culturais angolanos, Pepetela constrói uma obra que questiona identidades, moralidades e estruturas sociais profundamente enraizadas.
A história gira em torno de uma família liderada por Baltasar Van Dum, um flamengo rico e influente, que se estabelece em Angola como comerciante de escravos. Ele constitui uma numerosa e peculiar família com suas várias mulheres negras e filhos mestiços, dando origem à chamada “gloriosa família”. Embora rica e poderosa, essa família é construída sobre as bases frágeis da exploração e da escravidão. O narrador é um dos filhos mestiços de Van Dum, mas é escravo — o que confere à obra uma voz crítica, irônica e profundamente simbólica.
A narrativa revela, com crueza, a dinâmica contraditória entre senhores e escravizados, dentro de uma mesma casa e muitas vezes dentro da mesma família. A figura de Van Dum representa o colonizador que explora, mas também se apropria da cultura local, estabelecendo relações complexas de poder e afeto. O livro não esconde a brutalidade do sistema escravista, tampouco as alianças políticas e militares com os reinos africanos locais, responsáveis também pela captura e venda de seus próprios compatriotas.
Pepetela utiliza a ironia como uma arma poderosa. Ao dar voz ao escravo que narra os feitos da família, ele subverte a lógica colonial e patriarcal. Esse narrador sem nome representa os silenciados da história, os esquecidos, e confere à obra uma profundidade simbólica extraordinária. Ao mesmo tempo, ele exibe conhecimento refinado sobre política, religião e cultura, desafiando os estereótipos sobre a suposta ignorância dos escravizados.
O romance também propõe uma reflexão sobre a identidade angolana. Os filhos mestiços da gloriosa família são uma metáfora da complexidade da formação social de Angola, marcada por contradições, violências e cruzamentos de culturas. O passado colonial, longe de ser uma herança estática, é mostrado como um processo vivo, que ainda influencia o presente da nação.
Outro aspecto relevante é a crítica à hipocrisia religiosa e moral da elite colonial. Van Dum e seus pares se apresentam como homens virtuosos e civilizados, mas suas práticas cotidianas — como o tráfico humano e o abuso sexual — revelam uma ética corrompida. O título “gloriosa” é claramente irônico, pois essa glória está edificada sobre a desumanidade.
“A Gloriosa Família” é, portanto, uma narrativa essencial para compreender as raízes históricas e sociais de Angola. Ao mesmo tempo, ultrapassa fronteiras nacionais e dialoga com toda a herança colonial deixada nos países lusófonos e nas Américas. Sua leitura é fundamental para quem deseja refletir sobre escravidão, colonialismo, mestiçagem, e as vozes silenciadas pela história oficial.
Com essa obra, Pepetela não apenas reafirma seu lugar de destaque na literatura africana de língua portuguesa, mas também oferece um testemunho literário e político de valor inestimável. “A Gloriosa Família” é, enfim, uma denúncia feita com arte, um romance histórico que se lê como um espelho incômodo — e necessário — de um passado que ainda reverbera no presente.