A Lapa e a Contrapina, de Marques Rebelo, é um romance que mergulha no Rio de Janeiro do início do século XX, dando vida à boemia, aos personagens anônimos e aos contrastes sociais da capital. A obra é um retrato da cidade em transformação, quando tradições conviviam com o surgimento de uma modernidade ainda tímida, criando um ambiente cheio de tensões, esperanças e desencantos.
O enredo se desenvolve em torno de figuras típicas da Lapa, bairro célebre por seus bares, cabarés e encontros noturnos. Marques Rebelo descreve a atmosfera com um olhar atento e, ao mesmo tempo, crítico, revelando o cotidiano de artistas, malandros, prostitutas e trabalhadores que se misturam no espaço urbano. É nesse cenário que se constrói a “contrapina” do título: um contraponto entre ilusões e realidades, entre os sonhos de ascensão e a dureza das condições de vida.
A narrativa, marcada por forte realismo, apresenta uma galeria de personagens complexos, em que nenhum se resume a estereótipos. Ao mostrar seus desejos, fraquezas e escolhas, o autor dá humanidade aos marginalizados e evidencia as ambiguidades dos que circulam pela vida boêmia. Ao mesmo tempo, destaca os dilemas de uma sociedade que oscila entre a tradição patriarcal e os ares de modernização.
O estilo de Marques Rebelo chama a atenção pela fluidez e pela riqueza de detalhes. Suas descrições da Lapa são carregadas de cores, sons e cheiros, transportando o leitor diretamente para as ruas movimentadas, os salões cheios de música e os encontros regados a bebida e conversa. A oralidade da fala popular é incorporada ao texto, reforçando o tom de autenticidade da narrativa.
Um dos temas centrais é o contraste entre o desejo de ascensão social e as armadilhas da realidade. Muitos personagens sonham com uma vida diferente, mais digna ou mais confortável, mas esbarram nas limitações impostas pela desigualdade. A “contrapina” aparece, assim, como metáfora para as frustrações de uma geração que busca caminhos, mas muitas vezes encontra barreiras intransponíveis.
Marques Rebelo também explora o universo feminino na obra, revelando mulheres fortes, mas marcadas por preconceitos e por condições de vida que as empurram à marginalidade. Elas aparecem como figuras centrais na trama, tanto no convívio da boemia quanto nas relações afetivas, que oscilam entre paixão, exploração e resistência.
A Lapa, mais do que cenário, torna-se personagem do romance. O bairro é apresentado como espaço de liberdade e transgressão, mas também de decadência e desilusão. É nesse palco vibrante e ambíguo que as histórias individuais se cruzam, revelando uma cidade em ebulição, com suas contradições e com a promessa sempre adiada de mudança.
O romance, assim, não é apenas um retrato da boemia, mas também uma crítica social. Marques Rebelo denuncia, com sutileza, a hipocrisia das elites e a falta de oportunidades para os mais pobres, mostrando como a sociedade carioca da época reproduzia desigualdades profundas sob o verniz da modernidade.
Em suma, A Lapa e a Contrapina é uma obra fundamental para compreender a literatura urbana brasileira, trazendo à tona um retrato fiel da vida carioca do início do século XX. Entre nostalgia, desencanto e poesia, Marques Rebelo constrói um painel vivo e contraditório, que faz da cidade, de seus tipos e de suas noites um espelho da própria condição humana.