“A Vida Modo de Usar”, de Georges Perec, é uma das obras mais complexas e inovadoras da literatura contemporânea. Publicado em 1978, o romance é um verdadeiro quebra-cabeça literário, onde Perec aplica sua paixão por restrições formais e experimentações narrativas. A trama se desenrola em um prédio parisiense e revela as vidas e histórias de seus moradores ao longo de décadas.
O livro segue uma estrutura geométrica rigorosa, inspirada no jogo de xadrez e em princípios matemáticos do grupo literário Oulipo, do qual Perec fazia parte. Cada capítulo foca em um dos 99 cômodos do edifício, e o autor descreve minuciosamente os objetos, personagens e acontecimentos ligados a esses espaços. Dessa forma, o leitor se torna um observador que percorre o prédio como se explorasse um imenso tabuleiro de jogo.
O núcleo da história gira em torno de Bartlebooth, um milionário excêntrico que dedica sua vida a um projeto obsessivo. Ele decide viajar pelo mundo por 20 anos, pintando 500 aquarelas de paisagens costeiras. Depois, retorna a Paris para transformá-las em quebra-cabeças, montá-los e, finalmente, destruí-los com o objetivo de apagar qualquer vestígio de sua existência. Esse ciclo, que deveria ser perfeito, acaba sendo interrompido por falhas e imprevistos.
Além de Bartlebooth, o romance apresenta uma galeria de personagens peculiares, como o artista maldito Valène, o enigmático síndico Altamont e a empregada que testemunha os segredos dos moradores. Cada um deles possui uma trajetória única, marcada por amores frustrados, crimes ocultos, jogos de poder e pequenos gestos cotidianos que revelam a complexidade da vida humana.
A narrativa é profundamente influenciada pelo conceito de “romance total”, onde Perec mistura diferentes estilos, gêneros e registros textuais. Ele insere listas detalhadas de objetos, descrições arquitetônicas minuciosas e referências culturais diversas, criando um universo denso e multifacetado. O leitor é constantemente desafiado a montar as peças da história e a perceber as conexões ocultas entre os elementos do livro.
Outro aspecto essencial é a presença do tempo como um personagem invisível. Enquanto as paredes do prédio registram a passagem das gerações, as histórias dos moradores se entrelaçam, formando um mosaico narrativo que reflete a efemeridade da existência. O título da obra sugere um manual de instruções para a vida, mas Perec subverte essa ideia ao mostrar que o cotidiano é imprevisível e caótico.
A última peça do quebra-cabeça nunca é colocada no lugar. O romance se encerra com um mistério, deixando lacunas que exigem a participação ativa do leitor. Essa característica faz de “A Vida Modo de Usar” uma experiência literária única, que desafia as convenções narrativas e convida à reflexão sobre a arte, a memória e a passagem do tempo.