“Os Cus de Judas”, publicado em 1979, é uma das obras mais emblemáticas de António Lobo Antunes. O romance retrata, com brutal honestidade e lirismo inquieto, a experiência de um jovem médico português enviado para a Guerra Colonial em Angola, nos anos finais do regime salazarista. O título provocativo já antecipa o desconforto e o confronto que a obra propõe, especialmente com relação à memória, à identidade e ao trauma da guerra.
O romance é construído em forma de um monólogo interior intenso e fragmentado, dirigido a uma mulher, durante uma noite lisboeta. O narrador, um alter ego do autor, relembra os horrores vividos na guerra, expondo as feridas emocionais e morais deixadas pelo conflito. Sua fala é caótica, cheia de digressões, marcada por um fluxo de consciência que mistura passado e presente, criando uma narrativa densa e pungente.
Ao longo do livro, Lobo Antunes denuncia a violência absurda da guerra, a destruição física e psíquica causada nos soldados e a hipocrisia do sistema político português da época. O título vulgar – “Os Cus de Judas” – refere-se ironicamente à porta do inferno, ou ao fim do mundo, expressão que os soldados usavam para se referir ao lugar remoto e sem sentido onde estavam combatendo. É uma metáfora para o exílio existencial imposto pela guerra.
A experiência do narrador em Angola é marcada pelo horror: cadáveres, febres tropicais, mortes banais, tortura e o peso do silêncio. O narrador não se apresenta como herói. Ao contrário, mostra-se despido de glórias ou patriotismo, desiludido com a missão colonial. Ele confessa o medo, o tédio, o absurdo cotidiano da violência institucionalizada e a transformação lenta de sua humanidade em cinismo e amargura.
Além da crítica à guerra, o romance aborda questões profundas da identidade portuguesa e do legado colonial. Lobo Antunes não escreve apenas sobre a guerra de Angola, mas sobre o fim de um império, a decadência de uma ideologia e o vazio que resta após o colapso das certezas nacionais. Ele confronta o leitor com uma Portugal em ruínas, tanto física quanto moralmente, marcada pela repressão, censura e mentira histórica.
A relação com a mulher a quem o narrador se dirige é ambígua, quase ausente. Ela serve como ouvinte simbólica, uma âncora para seu desabafo, talvez uma tentativa de reconciliação com o mundo civilizado, ou com sua própria sensibilidade perdida. Essa interlocução nunca se concretiza de fato, o que reforça o sentimento de isolamento e de incomunicabilidade que atravessa toda a obra.
A linguagem é outro elemento essencial em “Os Cus de Judas”. É barroca, violenta, lírica e desordenada, refletindo o estado mental do narrador. A forma como Lobo Antunes escreve exige do leitor atenção constante: não há capítulos, nem linearidade. A fragmentação do texto espelha o trauma que não pode ser dito de forma organizada – é um relato partido, como o próprio sujeito que narra.
A crítica literária reconheceu em “Os Cus de Judas” uma das maiores expressões do romance de guerra contemporâneo, comparável a obras como Apocalypse Now ou Naked and the Dead. A obra foi também um grito político num momento em que Portugal buscava entender e reavaliar seu passado recente, logo após a Revolução dos Cravos de 1974.
Por fim, “Os Cus de Judas” é um livro devastador e essencial. Lobo Antunes, com coragem e maestria literária, desmonta mitos, denuncia crimes e dá voz aos fantasmas que a guerra deixou. É um testemunho visceral de um tempo sombrio, mas também uma obra de arte intensa, onde a dor encontra sua forma mais poderosa: a palavra.