“Um Copo de Cólera”, de Raduan Nassar, é uma novela curta e intensa publicada em 1978, que se destaca pela força da linguagem e pela estrutura formal singular. O livro narra o encontro e o violento desentendimento entre um homem recluso no campo e sua amante, uma jornalista engajada, condensando em poucas páginas uma poderosa reflexão sobre desejo, poder, orgulho e frustração.
A narrativa se passa em apenas um dia, mas o tempo psicológico dilata cada instante. O protagonista, um homem que vive afastado da cidade, aguarda ansiosamente a visita da amante. Após uma noite de paixão intensa, os dois começam a discutir por motivos aparentemente triviais, mas que revelam tensões muito mais profundas sobre política, gênero, ideologia e identidade.
A estrutura da obra é composta por longos parágrafos contínuos, sem quebras visuais ou capítulos, criando um fluxo vertiginoso de pensamentos e falas. Essa forma espelha a torrente emocional dos personagens e exige do leitor uma leitura atenta e envolvida. A prosa é densa, sensual, agressiva e marcada por um lirismo cortante.
No cerne do conflito entre o homem e a mulher está o embate entre mundos distintos: o campo e a cidade, o conservadorismo e o engajamento político, o masculino autoritário e o feminino contestador. O protagonista representa o Brasil arcaico, patriarcal e violento, enquanto a mulher encarna o país moderno, urbano e politizado. O confronto entre os dois, embora íntimo, adquire proporções simbólicas e sociais.
O título da obra, “Um Copo de Cólera”, é metafórico e preciso. Um pequeno gesto – como a reclamação sobre formigas no jardim – serve de estopim para uma explosão emocional desproporcional. A cólera reprimida dos personagens, acumulada em suas contradições e ressentimentos, transborda em acusações, insultos e na recusa de ceder, expondo a fragilidade dos vínculos humanos.
Raduan Nassar articula erotismo e violência com maestria. A narrativa é repleta de tensão sexual e de desejo, mas também de repulsa e agressão. O erotismo não é idealizado, mas instável, conflituoso, e atravessado por jogos de dominação. O prazer e a fúria caminham juntos, fundindo-se num mesmo movimento de atração e destruição.
A linguagem é o grande protagonista da obra. Raduan Nassar constrói uma prosa musical, quase hipnótica, com frases longas, ricas em ritmo e repetições. O narrador oscila entre o registro lírico e o brutal, revelando os abismos interiores de seus personagens com precisão poética e contundente. Não há espaço para suavidades: tudo é dito com intensidade e beleza áspera.
Embora a história seja simples na superfície, “Um Copo de Cólera” é uma obra profunda e ambígua. Não oferece respostas fáceis, nem moraliza os personagens. Pelo contrário, mergulha nas contradições humanas, no orgulho ferido, na necessidade de controle e na impossibilidade de se comunicar plenamente. É um estudo das emoções extremas e do fracasso relacional.
Ao final, a obra deixa o leitor suspenso no ar. O desfecho não é conclusivo, mas inquietante. O conflito permanece irresolvido, como uma ferida aberta. “Um Copo de Cólera” é um retrato cru das relações humanas e um exemplo raro de literatura que diz muito com tão pouco. Raduan Nassar prova, com essa novela, que o silêncio entre duas frases pode gritar mais alto do que páginas inteiras.