Em “Caim”, José Saramago retoma com ousadia o tom provocador que marcou sua carreira, oferecendo uma releitura literária, crítica e profundamente irônica de episódios bíblicos centrais. Publicado em 2009, esse foi o último romance do autor português antes de sua morte, e carrega toda a força de seu estilo singular: frases longas, pontuação pouco convencional, narrador sarcástico e uma visão profundamente humanista do mundo.
A narrativa acompanha Caim, o personagem bíblico que mata seu irmão Abel, em uma jornada no tempo e no espaço, visitando eventos do Antigo Testamento. Condenado a vagar pela Terra após seu crime, Caim torna-se não apenas um errante, mas um observador e crítico dos atos de Deus — ou melhor, do Deus retratado na Bíblia, a quem Saramago representa de forma controversa, muitas vezes injusto, arbitrário ou até cruel.
José Saramago usa o personagem para revisitar episódios marcantes como a expulsão do Éden, a destruição de Sodoma, o sacrifício de Isaac e o episódio de Jó. A cada parada, Caim observa o sofrimento humano e questiona os motivos e os métodos de Deus. Suas perguntas, afiadas como navalhas, ecoam as inquietações modernas sobre fé, justiça e moralidade.
Ao longo do romance, a relação entre Caim e Deus é tensa, marcada por embates verbais, desconfiança mútua e ironias cortantes. Saramago, ateu convicto, usa a narrativa para colocar em xeque não apenas os atos divinos, mas também a interpretação cega das Escrituras. A história torna-se, assim, um exercício de releitura crítica e de resistência ao dogmatismo.
Apesar do tom iconoclasta, o livro não se reduz a uma simples negação religiosa. Em “Caim”, Saramago também convida à reflexão sobre responsabilidade, livre-arbítrio e o papel do homem diante do sofrimento. A figura de Caim, tradicionalmente associada ao mal e à maldição, é transformada num símbolo da razão inquieta, do ser humano que se recusa a aceitar o absurdo como natural.
O estilo do autor permanece intacto: frases sem pontuação convencional, diálogos embutidos no texto corrido e uma narrativa fluida, onde o leitor é desafiado a seguir o ritmo imposto pelo narrador. Longe de dificultar, essa escolha estilística imprime intensidade ao relato e força a atenção constante, mergulhando o leitor na lógica própria da obra.
A recepção de “Caim” foi marcada por controvérsias. Muitos o aplaudiram como uma obra corajosa e necessária, enquanto outros criticaram sua abordagem como desrespeitosa à fé. Saramago, no entanto, já era um autor acostumado à polêmica — e é justamente essa disposição para confrontar temas sagrados que torna o romance tão instigante.
Ao fim da narrativa, o destino do mundo se cruza novamente com o de Caim, e o final surpreendente do livro reforça a crítica à lógica destrutiva presente em certas visões religiosas. Com ironia e tragédia entrelaçadas, José Saramago transforma “Caim” numa reflexão sobre a fragilidade da moral imposta e sobre a urgência de questionarmos as autoridades absolutas, sejam divinas ou humanas.
Assim, “Caim” é mais do que uma provocação teológica: é um convite à lucidez. Um livro que, mesmo partindo de textos antigos, fala diretamente aos dilemas contemporâneos. E, como toda grande obra de Saramago, permanece atual, inquietante — é necessário.