No romance “Chão de Ferro”, Raimundo Carrero mergulha o leitor em um universo denso, carregado de simbolismo, violência e espiritualidade, onde a linguagem visceral revela tanto a beleza quanto o desespero humano. Ambientado no sertão nordestino, o livro transcende a geografia para abordar os conflitos internos do homem diante do sagrado, da culpa e da redenção.
A narrativa é conduzida pelo personagem Daniel, um homem marcado pela culpa e pela luta constante entre o desejo e a fé. Ex-seminarista, Daniel abandona o caminho religioso após um episódio traumático envolvendo sua sexualidade e a repressão religiosa. O “chão de ferro” do título representa tanto a rigidez moral quanto a impossibilidade de florescimento em meio à opressão.
Carrero constrói sua prosa com ritmo quase litúrgico, alternando o real e o fantástico, a carne e o espírito. A linguagem poética é entrecortada por imagens de sangue, cruzes, chibatas e silêncio, que remetem à tradição bíblica e ao sofrimento cristão. Mas aqui, a religiosidade não oferece consolo — ela aprisiona.
O narrador, ao se afastar da Igreja, busca na escritura sua redenção pessoal. Escrever torna-se seu novo culto. Contudo, essa escrita é marcada por uma angústia constante, como se cada palavra estivesse sendo esculpida no próprio corpo. A dor é tanto matéria quanto linguagem. Daniel escreve para exorcizar os demônios que a religião não conseguiu expulsar.
A figura feminina em “Chão de Ferro” também tem papel central, especialmente por meio da personagem Marta. Ela representa o desejo reprimido, o afeto que desafia as normas eclesiásticas e o sagrado que habita o corpo. A tensão entre Marta e Daniel explicita a luta entre a pureza imposta e a natureza humana incontornável.
Outro elemento marcante da obra é a crítica à hipocrisia das instituições religiosas. Carrero não nega a força espiritual da fé, mas expõe o uso do discurso religioso como instrumento de controle e violência. A figura dos padres e dos líderes religiosos é muitas vezes associada ao autoritarismo, ao abuso e à negação da liberdade individual.
O sertão, como cenário, não é apenas um espaço físico, mas um território simbólico onde a seca, a poeira e o calor intensificam a experiência humana. É ali que a fé se mistura ao desespero, e a redenção se mostra tão distante quanto a chuva. O sertão de Carrero é terreno fértil para o conflito entre o divino e o profano.
Ao longo da obra, Raimundo Carrero transforma “Chão de Ferro” numa espécie de via-crúcis literária. O romance exige do leitor não apenas atenção, mas entrega. É necessário atravessar a dor, enfrentar os pecados e reconhecer que, muitas vezes, é impossível voltar ao estado de inocência — especialmente quando a inocência foi uma mentira construída.
Por fim, “Chão de Ferro” é um livro duro, mas necessário. Raimundo Carrero oferece ao leitor uma experiência literária que ecoa os dilemas eternos da alma humana: culpa, fé, desejo, pecado e, sobretudo, a tentativa de encontrar sentido em um mundo onde o chão é ferro, e os passos, pesados.