Em O Evangelho Segundo Lázaro, Richard Zimler reinventa uma das figuras mais enigmáticas do Novo Testamento, dando-lhe voz própria e uma profundidade humana impressionante. Lázaro, aquele que, segundo os Evangelhos, foi ressuscitado por Jesus após quatro dias morto, torna-se aqui o narrador de sua própria história — e, com ela, reconta os bastidores espirituais, políticos e afetivos da Judeia do século I.
Zimler constrói um romance denso, lírico e provocador, que mistura pesquisa histórica com ousadia literária. O autor retira Lázaro da condição de milagre passivo para torná-lo um homem cheio de dúvidas, conflitos e espiritualidade. Seu relato é permeado por memórias da infância, do amor por sua irmã Maria, dos traumas da morte precoce do pai e, especialmente, de sua relação intensa e ambígua com Yeshua (Jesus), a quem chama de amigo e mestre.
A narrativa é profundamente pessoal. Lázaro fala ao leitor com franqueza, revelando suas dores, seus desejos e sua transformação espiritual ao longo da vida. Sua morte e posterior ressurreição são descritas com sensorialidade quase angustiante, e sua volta à vida impõe um peso que ele carrega com dificuldade — um retorno que não é celebração, mas uma travessia marcada por dor, isolamento e assombro.
Richard Zimler entrelaça com maestria o íntimo com o político. A tensão entre romanos e judeus, o papel das seitas religiosas da época e a opressão imperial são o pano de fundo constante do romance. Lázaro, sendo da elite local, oferece uma visão privilegiada sobre essas tensões, e sua aproximação com Yeshua o coloca em risco constante.
A obra também revisita a figura de Jesus com nuances humanas. Não se trata aqui do Cristo triunfante das Escrituras, mas de um Yeshua sábio, compassivo, às vezes cansado, profundamente humano e consciente de sua missão trágica. A amizade entre ele e Lázaro é um dos pilares emocionais da narrativa, marcada por diálogos filosóficos e momentos de silêncio que dizem muito.
Zimler toca em temas caros à espiritualidade, como o sentido da fé, o medo da morte, a transcendência da alma e a natureza do amor. Em meio a isso, ele oferece ao leitor uma Judeia viva, com aromas, sons e paisagens descritas com apuro sensorial. A linguagem é bela, fluente, mas sem perder o tom solene que a temática exige.
O autor também se debruça sobre o papel das mulheres — especialmente Maria e Marta, irmãs de Lázaro — oferecendo figuras femininas fortes, complexas e determinantes na construção emocional do protagonista. Ao fazer isso, Zimler restitui voz a personagens que foram secundarizadas por séculos de tradição religiosa.
O Evangelho Segundo Lázaro é um livro de fé, mas não de doutrina. É um mergulho poético e crítico na origem do cristianismo, que respeita a tradição ao mesmo tempo que a questiona com honestidade literária. A obra se sustenta tanto como romance histórico quanto como reflexão espiritual sobre perda, redenção e a possibilidade de recomeçar mesmo depois da morte — literal ou simbólica.
Richard Zimler, conhecido por outros romances históricos de viés religioso e filosófico, como O Último Cabalista de Lisboa, demonstra aqui, mais uma vez, seu domínio narrativo e sua coragem em reimaginar o sagrado. O Evangelho Segundo Lázaro é um livro que emociona, desafia e permanece com o leitor muito tempo após a última página.