“A Paixão Segundo G.H.”, publicado em 1964, é uma das obras mais desafiadoras e profundas de Clarice Lispector. Longe de uma narrativa tradicional, o romance mergulha no interior da mente da narradora-protagonista, identificada apenas pelas iniciais G.H., conduzindo o leitor por uma jornada de desconstrução do eu e confrontação com o abismo existencial.
Tudo começa quando G.H., uma mulher de classe média do Rio de Janeiro, entra no quarto da empregada que havia acabado de deixar seu emprego. Esperando encontrar desordem ou sujeira, ela se depara com um ambiente limpo, austero e quase sagrado. No meio desse cenário, um acontecimento aparentemente banal – o esmagamento de uma barata – desencadeia uma epifania avassaladora. O nojo, o medo e a contemplação da criatura desencadeiam uma crise ontológica, e G.H. começa a refletir sobre a essência da existência, de Deus, do tempo e de si mesma.
A narrativa é conduzida em fluxo de consciência, com frases longas, parágrafos densos e construções poéticas que desafiam as convenções literárias. Clarice Lispector transforma o acontecimento cotidiano em um espelho do ser, e G.H. passa a questionar tudo o que sabia sobre sua identidade, suas certezas e seu lugar no mundo. A barata, nesse contexto, torna-se símbolo do informe, da matéria bruta e do inominável – aquilo que antecede a linguagem e destrói os contornos do ego.
“A Paixão Segundo G.H.” é um livro de revelações, mas também de silêncios. Clarice Lispector não oferece respostas, apenas a vivência intensa da dúvida. O título faz referência direta à paixão de Cristo, sugerindo um percurso de sofrimento e purificação espiritual. No entanto, o sacrifício aqui é interno: trata-se de matar o eu que se reconhecia como estável, e emergir no desconhecido, no que não tem nome, no que é antes do pensamento.
Há, ao longo do romance, uma constante tensão entre a linguagem e o indizível. G.H. tenta narrar sua experiência, mas reconhece a limitação das palavras para expressar o que sente. Isso transforma a leitura em um exercício de introspecção e escuta: o leitor é convocado a participar da experiência, a atravessar seus próprios labirintos internos.
A obra também levanta questões sobre classe, servidão, culpa e o papel da mulher na sociedade. A relação entre G.H. e a empregada ausente se insinua como pano de fundo de um drama maior – o da diferença, da alteridade e da alienação social.
Com “A Paixão Segundo G.H.”, Clarice Lispector atingiu um dos pontos mais altos da literatura existencial brasileira. O livro é exigente, intenso e perturbador. Não oferece conforto, mas revelações. Não propõe narrativas fáceis, mas experiências transformadoras.
Ler “A Paixão Segundo G.H.” é confrontar-se com o mistério do ser e com a fragilidade da identidade. É descer aos porões da consciência, encarar a barata – e a si mesmo – sem mediações. É um convite à paixão mais radical: a de existir.