No livro, Carrère inicia com uma narrativa autobiográfica de sua juventude, quando se tornou católico fervoroso, frequentando missas diariamente e dedicando‑se à leitura dos Evangelhos. Ele revela como essa fase de fé intensa durou poucos anos, até que dúvidas começaram a surgir, levando‑o a uma forma de ceticismo. Essa abertura serve para situar o leitor na ambiguidade entre crença e descrença, que permeia toda a obra. Ele funde essa experiência pessoal com uma investigação histórica sobre os primórdios do cristianismo. A junção de vida íntima e estudo erudito cria um tom híbrido, entre ensaio, memória e reportagem.
Em seguida, Carrère propõe investigar como o cristianismo nascente se formou no século I, focando em duas figuras principais: Paulo de Tarso, o apóstolo que não conheceu Jesus em vida, e Lucas, autor do Evangelho que leva seu nome e dos Atos dos Apóstolos. Ele examina como, a partir de uma seita judaica centrada em um pregador crucificado sob o reinado de Tibério, emergiu uma nova religião que em três séculos conquistou o Império Romano. Essa reconstrução histórica combina fontes bíblicas, cartográficas culturais e conjecturas críticas sobre o que é “certo, provável, possível ou não impossível”. A narrativa revela os bastidores humanos e imperfeitos dos protagonistas.
Carrère mostra Paulo como personagem complexo, impulsivo, missionário radical que molda a doutrina cristã com rigor e visão estratégica, muitas vezes em contraste com Lucas, mais introspectivo, escritor e observador. Ele explora as tensões entre judaísmo e helenismo, entre culto da lei e espírito de liberdade, e como essas tensões ajudaram a formar a identidade cristã nascente. O autor também destaca o papel de Lucas em documentar, em linguagem helenizada, a expansão do movimento cristão, rastreando‑o da Macedônia até Jerusalém. O livro oferece releituras audaciosas desses personagens, mostrando‑os além dos cânones tradicionais.
A obra revisita eventos centrais como os primeiros concílios, dissidências internas, viagens missionárias, prisões, litígios doutrinários e o papel da estrutura romana na propagação da fé. Carrère descreve como a interseção entre política, império e religião acelerou a disseminação do cristianismo. Ele examina a reinvenção de símbolos, a adaptação cultural e a institucionalização do culto. Nesse cenário, o autor enfatiza que a construção da fé foi menos um milagre súbito e mais um processo gradual, tortuoso e humano, marcado por contradições. Essa abordagem dá ao livro um caráter de “história do possível”.
Além disso, Carrère aborda a questão da fé do ponto de vista existencial: o que significa acreditar? Ele interroga sua própria conversão e renúncia, questiona a consistência dos dogmas e analisa o efeito da fé na vida pessoal. Ele confessa que “não acredita” em muitos dos eventos sobrenaturais, mas questiona o valor da experiência de acreditar. Essa parte introspectiva torna o livro relevante tanto para crentes quanto para não‑crentes, pois propõe uma reflexão sobre o mistério, a dúvida e o sentido da religião. A honestidade intelectual do autor é um dos aspectos mais elogiados.
O texto também inclui momentos de ironia e autocrítica, quando Carrère compara disputas do cristianismo nascente — como entre Paulo e Tiago — com batalhas ideológicas modernas. Ele não deixa de apontar o contraste entre o ideal de fraternidade cristã e a realidade institucional da Igreja contemporânea. Ele questiona se o “Reino” proclamado por Jesus ainda habita o mundo moderno ou se foi assimilado por estruturas de poder que deturparam seu espírito. Essa visão crítica provoca uma reflexão sobre o que sobra da fé original no contexto secularizado do século XXI.
No decorrer da leitura, o autor apresenta também sua metodologia: combinar fontes históricas, teológicas e autobiográficas, admitindo lacunas, hipóteses e silêncios. Ele convoca o leitor a acompanhar essa investigação com espírito aberto, consciente de que nem tudo pode ser provado com certeza. Ele avisa que a narrativa oscila entre “sei”, “acho”, “posso supor” e “ignoro” — e justamente essa oscilação é parte da força do livro. Isso reforça a ideia de que tanto a fé quanto a história são territórios de incerteza e que avançar significa estar disposto a habitar essa zona cinzenta.
Em síntese, O Reino oferece simultaneamente uma meditação sobre a fé, uma autobiografia íntima e uma história literária das origens do cristianismo. Carrère convida o leitor a refletir sobre o sagrado, o humano, o poder e a dúvida, mostrando‑que acreditar ou não pode ser menos importante do que entender o que a experiência da fé fez — e ainda faz — às pessoas e às comunidades. Ele demonstra que a transformação do mundo antigo — política, cultural e religiosa — dependeu de personagens reais, lutas reais e de uma religiosidade viva, e que essa história continua a nos interpelar hoje.

