O romance Eles Eram Muitos Cavalos, de Luiz Ruffato, é uma obra marcante da literatura brasileira contemporânea que rompe com as estruturas narrativas tradicionais para representar a complexidade caótica da cidade de São Paulo em um único dia. Ambientado em 9 de maio de 2000, o livro retrata vinte e quatro horas na vida de dezenas de personagens, revelando fragmentos de suas existências de forma intensa e fragmentada. A estrutura não linear e o estilo experimental fazem do romance uma experiência de leitura desafiadora e provocadora.
Luiz Ruffato utiliza 69 pequenos textos, com diferentes formas e vozes narrativas, para compor um grande mosaico urbano. Cada texto apresenta uma situação, um pensamento ou um diálogo, muitas vezes desconectados entre si, mas que, juntos, constroem um retrato multifacetado da vida cotidiana paulistana. Os personagens não se repetem e muitas vezes nem têm nome; são anônimos que simbolizam as diversas camadas sociais, étnicas e econômicas que compõem a cidade.
O título da obra, Eles Eram Muitos Cavalos, é retirado de um verso de Cecília Meireles e remete ao caos e à multiplicidade de vozes que invadem a narrativa. Assim como em um turbilhão de cavalos galopando sem direção definida, a cidade se move descontroladamente, sem pausa, sem ordem aparente. Ruffato transforma esse movimento caótico em linguagem, fazendo uso de diferentes registros, gírias, cortes abruptos, repetições e até silêncio.
A cidade de São Paulo é, portanto, a grande protagonista do livro. O autor evita os cartões-postais e foca nas margens, nas periferias, nos submundos, nas pessoas invisíveis. Ruffato dá voz aos esquecidos: à empregada doméstica, ao camelô, ao taxista, à criança de rua, à mulher que sofre violência doméstica, ao jovem que sonha com um futuro melhor. Cada texto é uma janela breve e potente para a realidade crua dessas pessoas.
A obra também é marcada por um forte tom político e social. Ao expor o cotidiano dos personagens, Luiz Ruffato denuncia a desigualdade, o preconceito, a solidão e a violência urbana. A cidade aparece como um espaço de conflito, onde a luta pela sobrevivência é constante. O autor não oferece consolo ou soluções, apenas apresenta a realidade como ela é, em sua forma bruta e muitas vezes sufocante.
Um dos aspectos mais inovadores do livro é a fragmentação estrutural. Não há enredo contínuo, nem personagens fixos ou uma narrativa clássica. O leitor precisa montar o quebra-cabeça, interpretando as peças soltas para construir um sentido maior. Essa técnica narrativa convida à reflexão sobre a própria maneira como vivemos e entendemos o mundo urbano: não de forma linear, mas em flashes, instantes e sobreposições.
O estilo literário de Luiz Ruffato em Eles Eram Muitos Cavalos é marcado por um experimentalismo radical. Ele quebra a pontuação tradicional, mistura prosa com poesia, introduz textos publicitários, relatórios, transcrições de falas. O autor amplia os limites da linguagem literária para captar o ritmo frenético e desordenado da metrópole. A forma do livro, assim como o conteúdo, é política.
A experiência de leitura não é fácil nem confortável. Ruffato exige atenção e abertura do leitor, que deve se despir das expectativas convencionais para mergulhar nesse emaranhado de vozes e vidas. Mas é justamente essa ousadia que faz da obra um marco: Eles Eram Muitos Cavalos transforma o caos urbano em arte, oferecendo um testemunho poderoso da condição humana nas grandes cidades brasileiras.
Ao final, o livro não oferece um fechamento claro. Ele termina como começou: abruptamente, como a vida nas ruas de São Paulo. Luiz Ruffato não quer concluir, mas provocar. Eles Eram Muitos Cavalos é uma obra que reverbera muito além da última página, exigindo que o leitor continue pensando, sentindo e refletindo sobre o que viu, ouviu e leu — como se cada fragmento ecoasse por muito tempo dentro de quem ousa enfrentá-lo.