Em “Eva”, William Paul Young — autor do aclamado A Cabana — mergulha mais uma vez em uma narrativa alegórica e profundamente espiritual, desta vez reimaginando o relato da criação bíblica a partir de uma perspectiva singularmente feminina. A obra propõe uma releitura ousada do Gênesis, em que a figura de Eva é resgatada da marginalidade e colocada no centro da história como símbolo de redenção, dignidade e origem.
A protagonista é Lilly Fields, uma jovem resgatada à beira da morte em um misterioso contêiner lançado ao mar. Ferida física e emocionalmente, Lilly é levada a um ambiente além do tempo e espaço convencionais — um “entre-mundos” — onde passa a testemunhar a recriação da história da humanidade sob a orientação de seres celestiais, entre eles, a própria Eva, apresentada não como a origem do pecado, mas como a portadora de uma verdade ancestral e redentora.
William Paul Young constrói uma narrativa poética e simbólica, em que o conceito de gênero, culpa e identidade são desconstruídos. A queda no Éden, tradicionalmente associada ao erro da mulher, é reinterpretada com mais compaixão e profundidade. A Eva de Young não é a vilã da humanidade, mas uma figura complexa, de sabedoria e ternura, cuja história foi distorcida por séculos de patriarcalismo e medo.
O livro é marcado por passagens intensas de diálogo entre personagens simbólicos — como Adonai, Sarayu e outros arquétipos divinos — que guiam Lilly em seu processo de cura e descoberta. A escrita é lírica e densa, convidando o leitor à contemplação espiritual. Não se trata de um romance convencional, mas de uma parábola moderna, com linguagem que alterna entre a teologia poética e a fantasia existencial.
Lilly representa a humanidade ferida, carregando traumas e abusos, mas também a possibilidade de reconstrução. À medida que ela se reconecta com a história de Eva, sua própria narrativa vai sendo curada. A experiência dela torna-se a do leitor: desvelar camadas esquecidas de si mesmo, reinterpretar antigas crenças e reconhecer a dignidade das origens.
O grande mérito de Eva é oferecer uma alternativa à tradição que, por séculos, culpabilizou a mulher pela queda da humanidade. William Paul Young propõe uma teologia inclusiva, amorosa e restauradora, onde o feminino é exaltado como fonte de vida, sabedoria e reconciliação. A linguagem divina é apresentada como essencialmente relacional e não punitiva, e a graça de Deus aparece como um ato constante de acolhimento e transformação.
Eva é uma obra que certamente divide opiniões — sobretudo entre leitores mais tradicionais —, mas que tem o poder de provocar profundas reflexões sobre fé, gênero, história e espiritualidade. William Paul Young escreve não para doutrinar, mas para libertar. Para muitos, será uma leitura incômoda; para outros, profundamente libertadora.
No final, a mensagem é clara: Eva não foi o erro, mas o começo. E o amor divino não começa com a queda, mas com a escolha de restaurar.