Em “O Testamento de Maria”, Colm Tóibín oferece uma recriação ousada e profundamente humana da figura de Maria, mãe de Jesus. Longe da imagem idealizada e silenciosa que a tradição religiosa costuma retratar, Maria aqui é apresentada como uma mulher idosa, solitária e dilacerada pelo luto, que tenta compreender os acontecimentos que levaram à morte brutal de seu filho.
A narrativa é feita em primeira pessoa, dando voz a uma Maria que se distancia da santidade oficial e se aproxima do real, do trágico e do terreno. Ela não vê em Jesus um messias, mas sim um filho envolvido em algo que escapava ao seu controle — uma mistura de política, fé, idolatria e expectativas alheias. Sua dor não é reverente, é crua.
Tóibín constrói uma personagem que se recusa a ser cúmplice da história que outros querem contar em seu nome. Ela critica os discípulos, chama-os de sonhadores e manipuladores, e denuncia a construção de uma narrativa que distorce o que ela acredita ser a verdade. Para Maria, a crucificação não foi redenção, mas horror; o milagre de Lázaro não foi bênção, mas perturbação.
O texto tem uma linguagem contida, delicada e ao mesmo tempo cortante. Cada palavra carrega o peso do sofrimento e da incompreensão. Maria vive exilada, vigiada, temendo o que será feito com sua memória e com a figura do filho que já não lhe pertence.
Colm Tóibín, com sua prosa elegante e sóbria, não busca provocar escândalo, mas sim recuperar a humanidade perdida de uma figura sacralizada. Ao fazer isso, transforma Maria em uma das vozes mais comoventes da literatura contemporânea — uma mulher que se lembra, resiste e se recusa a mentir, mesmo quando todos ao redor querem transformar sua dor em doutrina.
“O Testamento de Maria” é uma leitura breve, mas intensa. Sua força está na simplicidade da confissão e na coragem de imaginar a dor de uma mãe não como símbolo, mas como experiência vivida. É, antes de tudo, um livro sobre perda, silêncio e resistência.
Ao final, resta uma figura feminina solitária, mas profundamente digna: Maria não como santa, mas como mulher. Uma mulher cuja história, nas mãos de Tóibín, torna-se ainda mais poderosa justamente por não se curvar ao mito.